História dos Santos

São José Maria Escrivá - Fundador da Opus Dei - O santo do cotidiano

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"Cumprir a vontade de Deus no trabalho, contemplar a Deus no trabalho, trabalhar por amor a Deus e ao próximo, converter o trabalho em meio  de apostolado, dar às coisas humanas um valor divino" - nestas densas palavras do Fundador se pode resumir o carisma, ao mesmo tempo contemplativo e ativo, do Opus Dei.

Pe Francisco Faus.jpgPe. Francisco Faus

         No dia 6 de outubro de 2002, na Praça de São Pedro do Vaticano, perante uma multidão de mais de 300 mil pessoas de todas as idades e condições procedentes dos cinco continentes, o Papa João Paulo II celebrou a solene cerimônia de canonização de São Josemaria Escrivá, Fundador do Opus Dei.

Na homilia da Missa, o Santo Padre resumiu nesse dia, em poucas palavras, a essência da mensagem espiritual de Mons. Escrivá: "Elevar o mundo a Deus e transformá-lo a partir de dentro: eis o ideal que o Santo Fundadorlhes indica, queridos irmãos e irmãs que hoje se alegram pela sua elevação à glória dos altares".

Na manhã seguinte, 7 de outubro, foi celebrada na própria Praça de São Pedro uma solene concelebração em ação de graças pela canonização. Terminada a Missa, o Papa João Paulo II, acolhido com uma calorosa manifestação de entusiasmo, dirigiu a palavra à multidãoSao Josemaria escriva1.jpg de fiéis, cooperadores e amigos do Opus Dei, que - como no dia anterior - atulhava a Praça e se estendia pela Via della Conciliazione e as outras ruas adjacentes, chegando até ao Castelo de Sant'Angelo. Na sua alocução, João Paulo II voltou a frisar o cerne do carisma, da mensagem espiritual de São Josemaría com as seguintes palavras:

        "São Josemaria foi escolhido pelo Senhor para anunciar a chamada universal à santidade e mostrar que as atividades correntes que compõem a vida de todos os dias são caminho de santificação. Pode-se dizer que foi o santo do cotidiano. De fato, estava convencido de que, para quem vive sob a ótica da fé, tudo é ocasião de um encontro com Deus, tudo se torna um estímulo para a oração. Vista desta forma, a vida diária revela uma grandeza insuspeita. A santidade apresenta-se verdadeiramente ao alcance de todos."

Os fiéis que ouviam essas palavras do Papa tinham escutado pouco antes, na Missa, a homilia do Prelado do Opus Dei, Dom Javier Echevarría que lhes recordara palavras de São Josemaria a seus filhos espirituais, escritas nos primórdios do Opus Dei, em 24 de março de 1930: "Viemos dizer, com a humildade de quem se sabe pecador e pouca coisa -‘ homo peccator sum' (Lc 5, 8), dizemos com Pedro - mas com a fé de quem se deixa guiar pela mão de Deus, que a santidade não é coisa para privilegiados, que o Senhor chama-nos a todos, de todos espera Amor: de todos, estejam onde estiverem; de todos, seja qual for o seu estado, a sua profissão ou ofício. Porque essa vida corrente, cotidiana, sem relevo, pode ser meio de santidade: não é preciso abandonar o próprio estado no mundo para procurar a Deus, se o Senhor não dá a uma alma a vocação religiosauma vez que todos os caminhos da terra podem ser ocasião de um encontro com Cristo".

Com isso, São Josemaria nada mais fazia do que frisar, mais uma vez, o núcleo da mensagem que recebera de Deus, em 2 de outubro de 1928, data da fundação do Opus Dei. Após anos de oração e penitência constantes, naquela data Deus lhe mostrara a sua Vontade - hámuitos anos pressentida, sem conseguir ver o que era -, e o Mons. Josemaria compreendeu que a única razão da sua existência devia ser entregarse inteiramente, com todas as forças, ao cumprimento desse desígnio divino: o Opus Dei.

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Todos são chamados à santidade

Em uma entrevista concedida a L'Osservatore della Domenica, em 1968, Mons. Escrivá definia assim o que caracteriza a vocação para o Opus Dei:

Vou dizê-lo em poucas palavras: é procurar chegar à santidade em meio do mundo, no meio da rua. Quem recebe de Deus a vocação específica para o Opus Dei sabe - e vive - que deve alcançar a santidade em seu próprio estado, no exercício de seu trabalho, manual ou intelectual.

A finalidade a que o Opus Dei aspira - esclarecia na mesma entrevista - é favorecer a procura da santidade e o exercício do apostolado por parte de cristãos que vivem no meio do mundo, seja qual for o seu estado ou condição. A Obra nasceu a fim de contribuir para que esses cristãos, inseridos no tecido da sociedade civil - com a sua família e as suas amizades, o seu trabalho profissional, as suas aspirações nobres -, compreendam que a sua vida, tal como é, pode vir a ser ocasião de um encontro com Cristo: quer dizer, que é um caminho de santificação e apostolado (...). A vida de um simples cristão - que talvez a alguns pareça vulgar e acanhada - pode e deve ser uma vida santa e santificante" (1).

Deus dissipava assim o mal-entendido, freqüente entre muitos católicos, de que, para aspirar à santidade, seria "indispensável abandonar o mundo, afastar-se dele... ou dedicar-se a uma atividade eclesiástica" (2).

Já no seu livro "Caminho", o Mons. Escrivá deixara estampada uma afirmação que vinha repetindo desde a fundação da Obra: "Tens obrigação de santificar-te. - Tu também. - Alguém pensa, por acaso, que é tarefa exclusiva de sacerdotes e religiosos? A todos, semSao Josemaria escriva2.jpgexceção, disse o Senhor: ‘Sede perfeitos, como meu Pai Celestial é perfeito'" (3). Anos depois, a Igreja, no capítulo VI da Constituição Lumen gentium consagrou e pôs em destaque essa doutrina de entranha evangélica proclamando a Vocação universal à santidade de todos os batizados.

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Caminho de santificação no trabalho e nos deveres cotidianos

Um traço específico do carisma do Opus Dei, com o qual Nosso Senhor abriu caminhos práticos para a santificação do cristão no meio do mundo, é a percepção de que o trabalho profissional (e quem diz trabalho diz família, diz deveres sociais, diz atividade cultural, diz lazer, diz, em suma, vida cotidiana) pode e deve ser meio e ocasião de santidade e de apostolado.

Viemos chamar de novo a atenção - esclarecia o Fundador - para o exemplo de Jesus que, durante trinta anos, permaneceu em Nazaré trabalhando, desempenhando um ofício. Nas mãos de Jesus, o trabalho, e um trabalho profissional semelhante àquele que desenvolvem milhões de homens no mundo, converte-se em tarefa divina, em trabalho redentor, em caminho de salvação" (4).

Neste sentido, Bento XVI, falando do trabalho aos artesãos da Itália, dizia que São Josemaria Escrivá, um santo desta nossa época, observa que o trabalho, tendo sido desempenhado por Cristo que trabalhou como artesão, "se torna uma atividade redimida e redentora: não somente é o âmbito em que o homem vive, mas também instrumento e caminho de santidade, realidade santificável e santificadora (Homilia ‘É Cristo que passa', n. 47)" (5).

Não se cansava, por isso, de ensinar que, para os cristãos comuns, "a vida corrente é o verdadeiro lugar da existência cristã". Um pensamento cheio de conseqüências que expôs, com vivacidade e clareza sobrenatural, numa homilia pronunciada em 8 de outubro de 1967, numa Missa celebrada no campus da Universidade de Navarra (6):

Meus filhos: aí onde estão nossos irmãos os homens, aí onde estão as nossas aspirações, o nosso trabalho, os nossos amores - aí está o lugar do nosso encontro cotidiano com Cristo. É em meio às coisas mais materiais da terra que nós devemos santificar-nos, servindo a Deus e a todos os homens.

Tenho-o ensinado constantemente com palavras da Escritura Santa: o mundo não é ruim, porque saiu das mãos de Deus, porque é criatura d'Ele, porque Javé olhou para ele e viu que era bom (Cfr. Gn, 1, 7 ss.). Nós, os homens, é que o fazemos ruim e feio, com nossos pecados e nossas infidelidades. Não duvidem, meus filhos; qualquer modo de evasão das honestas realidades diárias é para os homens e mulheres do mundo coisa oposta à vontade de Deus.

Pelo contrário, devem compreender agora - com uma nova clareza - que Deus os chama a servi-Lo em e a partir das tarefas civis, materiais, seculares da vida humana. Deus nos espera cada dia: no laboratório, na sala de operações de um hospital, no quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na oficina, no campo, no seio do lar e em todo o imenso panorama do trabalho. Não esqueçamos nunca: há algo de santo, de divino, escondido nas situações mais comuns, algo que a cada um de nós compete descobrir (...).

Não há outro caminho, meus filhos: ou sabemos encontrar o Senhor em nossa vida de todos os dias, ou não O encontraremos nunca."

Com uma expressão sintética, que gostava de repetir, resumia esse ideal de santidade dizendo que consiste em "santificar o trabalho, santificar-se no trabalho e santificar os outros através do trabalho". "

         O primeiro sucessor de São Josemaria à frente do Opus Dei, o Servo de Deus D. Álvaro del Portillo, fazia eco a essa mensagem, dizendo: "Pregou incessantemente que o cristão deve ocupar-se do trabalho sabendo que Deus o contempla... A sua tarefa tem que ser, portanto, uma tarefa santa e digna d'Ele: acabada em todos os seus pormenores - realizada com competência técnica e profissional - e levada a cabo com retidão moral, com hombridade, com nobreza, com lealdade, com justiça. Nessas condições, o seu trabalho profissional surgirá como algo de reto e santo, ao mesmo passo que, também por esse título de oferecimento ao Criador, será oração" (7). ".

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A oração dos filhos de Deus

"O trabalho será oração". A seus filhos, São Josemaria costumava dizer que, na sua vida, deveria chegar um momento em que não fosse mais possível distinguir oração e trabalho, porque o trabalho (e os outros deveres cotidianos) devem transformar-se em oração.

A quem desconhecesse o carisma do Opus Dei, poderia causar estranheza ouvir o Fundador afirmar que a vocação para a Obra de Deus é essencialmente contemplativa. No entanto, esta é a meta, este o ideal para quem é chamado a santificarse no mundo: fazer da vidaSao Josemaría-Escrivá-de-Balaguer.jpg ordinária uma contínua oração, um diálogo ininterrupto com Deus - com a Virgem Santíssima, com os santos Anjos... -, com esse Deus "que nos fala constantemente, através dos acontecimentos e das pessoas", e que através de tudo nos dá seu amor e nos pede amor.

O Papa João Paulo II expressou esse mesmo pensamento nos dias da canonização, com estas palavras:

"O Senhor fez com que São Josemaria entendesse profundamente o dom da nossa filiação divina. E ele ensinou a contemplar o rosto terno de um Pai no Deus que nos fala através das mais diversas vicissitudes da vida. Um Pai que nos ama, que nos acompanha passo a passo e nos protege, nos compreende e espera de cada um de nós uma resposta de amor. A consideração desta presença paterna, que acompanha o cristão a toda parte, proporciona-lhe uma confiança inquebrantável; em todos os momentos deve confiar no Pai celestial. Nunca se sente só nem tem medo. Quandose depara com a Cruz, não vê nela um castigo, mas uma missão que lhe foi confiada pelo próprio Senhor".

O sentido da filiação divina era, para Mons. Escrivá, o alicerce, o fundamento da vida espiritual. "A filiação divina - afirmava - é uma verdade feliz, um mistério consolador. A filiação divina empapa toda a nossa vida espiritual, porque nos ensina a procurar, conhecer e amar o nosso Pai do Céu, e assim cumula de esperança a nossa luta interior e nos dá a simplicidade confiante dos filhos pequenos. Mais ainda: precisamente porque somos filhos de Deus, esta realidade leva-nos também a contemplar com amor e com admiração todas as coisas que saíram das mãos de Deus Pai Criador. E deste modo somos contemplativos no meio do mundo, amando o mundo" (8).

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Unidade de vida; piedade, trabalho, apostolado

Deste modo, São Josemaria podia afirmar que a fisionomia espiritual própria do Opus Dei consiste na unidade de vida. Se a vida cristã tem como base a filiação divina - fundamento da piedade -; se procuramos que o trabalho santificado e santificador seja o eixo da vida espiritual; se a oração, a mortificação, o trabalho... apontam para a missão apostólica no meio do mundo, então os diversos aspectos da vida cristã se fundem e compenetram numa unidade harmônica: são, na simplicidade do cotidiano, como facetas de um único diamante.

Cumprir a vontade de Deus no trabalho - escrevia o Fundador em 1940 -, contemplar a Deus no trabalho, trabalhar por amor a Deus e ao próximo converter o trabalho em meio de apostolado, dar às coisas humanas um valor divino, esta é a unidade de vida, simples e forte, que devemos ter e ensinar" (9). 

        "Elevar o mundo a Deus 
- dizia o Papa na homilia da canonização de São Josemaria - e transformá-lo a partir de dentroeis o ideal que o Santo Fundador lhes indica". E lembrava que São Josemaria, movido por Deus, "sentiu surgir no seu interior a apaixonante chamada para evangelizar todos os ambientes", e a seguir evocava o constante ensinamento do santo para que esse ideal apostólico se tornasse realidade: "Primeiro, oração; depois, expiação; em terceiro lugar, ação" (10). Esta convicção de que "a fecundidade do apostolado encontra-se, antes de tudo, na oração e numa vida sacramental intensa e constante - concluía o Papa - é, no fundo, o segredo da santidade e do verdadeiro sucesso dos santos".

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Cristo, Maria, o Papa

Não ficaria completo este esboço, forçosamente sumário, do carisma e da mensagem espiritual do Fundador do Opus Dei, se nãoSao Josemaria_Escriva.jpgmencionássemos a sua cálida e intensa devoção a Nossa Senhora (a quem invocava, em tudo e para tudo, sem A separar jamais de São José) e o seu amor apaixonado à Igreja Santa, ao Romano Pontífice e aos bispos em comunhão com a Santa Sé.

Omnes cum Petro, ad Iesum per Mariam - Todos, com Pedro, a Jesus por Maria (11). Eis o roteiro espiritual que, desde a fundação, propôs como lema aos seus filhos espirituais, e que, seguindo o seu exemplo e os seus ensinamentos, os fiéis da Prelazia do Opus Dei procuram seguir e difundir com alegria e fidelidade.

"Sê de Maria e serás nosso",  escrevia nos anos trinta. "A Jesus sempre se vai e se ‘volta' por Maria", afirmava como um axioma sobrenatural. E frisava: "O amor à Senhora é prova de bom espírito, nas obras e nas pessoas singulares. - Desconfia do empreendimento que não tenha esse sinal" (12).

E, quanto ao amor ao Papa, rezava assim: "Obrigado, meu Deus, pelo amor ao Papa que puseste em meu coração" (13). "Católico, Apostólico, Romano! - Gosto de que sejas muito romano. E que tenhas desejos de fazer a tua romaria, videre Petrum, para ver Pedro" (14).

É significativo que as últimas palavras de São Josemaria nesta terra, pouco antes de que Deus o chamasse a Si, fossem uma exortação feita a um grupo das suas filhas, em Castelgandolfo, para que amassem com toda a alma a Igreja e o Papa. "Quando fordes velhos - tinha dito fazia pouco tempo, abrindo a alma -, e eu tiver prestado contas a Deus, haveis de dizer como o Padre amava o Papa com toda a sua alma, com todas as suas forças" (15). Este amor a Maria, à Igreja e ao Papa é um dos mais vincados traços do seu espírito, que gravou indelevelmente na alma dos fiéis da Prelazia, e que, por meio deles, vai ficando gravado no coração de quantos se aproximam do Opus Dei e procuram viver o seu espírito. (Revista Arautos do Evangelho, Agosto/2007, n. 68, p. 18 à 22)

Pe. Francisco Faus ordenou-se em 1955 e é licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em Direito Canônico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma.

1) J. Escrivá, Questões atuais do Cristianismo, 3ª ed., Quadrante 1986, nn.60 e 62.
2) Cf. Ibid., n. 60.
3) Caminho, n. 291.
4) Questões atuais do Cristianismo, n. 55 5) Bento XVI, discurso em 31/03/07.
6) Essa homilia pode ser ouvida - na voz do próprio São Josemaria - no site www.opusdei.org.br.
7) Josemaria Escrivá, instrumento de Deus, Ed. Quadrante, São Paulo 1992, p. 52.
8) São Josemaria Escrivá, É Cristo que passa, Quadrante 1975, n. 65.
9) Carta, 11 de março de 1940.
10) Caminho, n. 82.
11) Cf. Caminho, n. 833.
12) Cf. Ibid., nn. 494, 495 e 505.
13) Ibid. n. 573.
14) Ibid, n. 520.
15 Salvador Bernal, Perfil do Fundador do Opus Dei, Ed. Quadrante, São Paulo 1977, p. 108.

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São Gabriel de Nossa Senhora das Dores

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Movido por uma poderosa voz interior, aquele jovem vivaz, gentil e cheio de afeto decidiu tornar-se religioso. E, já revestido do hábito passionista, em um êxtase, sorriu pela última vez, aos 24 anos de idade.

A graciosa cidade italiana de Spoleto, na Perúgia, acordou radiante de alegria numa manhã da Oitava da Assunção de Maria, em 22 de agosto de 1856. Seus habitantes celebravam com júbilo a festa da Padroeira, agradecendo de modo especial o terem sido libertos da peste que devastara a região nos últimos anos.

Um belo quadro da Mãe de Deus, conhecido como a Madonna Del Duomo - Nossa Senhora da CatedSão Gabriel de Nossa Senhora das Dores, por N. Diotallevi.jpgral - ou a Sacra Icona - Sagrada Imagem -, havia sido retirado de seu relicário para ser conduzido pelas ruas, em solene procissão. Era um ícone de estilo bizantino doado à cidade pelo imperador Frederico Barba-Ruiva, em 1155, como sinal de reconciliação e de paz.

Segundo a tradição, teria sido pintado por São Lucas e se conservara na Catedral de Constantinopla até a época das perseguições iconoclastas. Não havia, naquelas animadas ruas, quem não caísse de joelhos ao ver desfilar com grande pompa a milagrosa imagem da Rainha do Céu. Todos esperavam receber d'Ela uma graça almejada, um consolo, uma bênção particular.

"O que fazes no mundo? Não foste feito para ele!"

Entre a multidão dos fiéis, aguardando a passagem do venerado ícone, destacava-se, naquele dia, um jovem de porte distinto e jovial. Quando a Sagrada Imagem da Santíssima Virgem passou diante dele e seu olhar fitou os olhos arrebatadores da imagem, ouviu de modo claro em seu interior estas inesquecíveis palavras: "Francisco, o que fazes no mundo? Tu não foste feito para ele. Segue a tua vocação!".1

Nesse momento, dando livre curso a abundantes lágrimas de agradecimento e compunção, tomou a firme resolução que há tempo vinha postergando: ser religioso, decidindo entrar na Congregação dos Passionistas. "Oh! Em que abismo não teria certamente caído se Maria, benigna até para com aqueles que não A invocam, não tivesse acorrido misericordiosamente em meu auxílio naquela Oitava de sua Assunção!"2, exclamaria ele, algum tempo depois. Tal episódio comovedor foi o decisivo ponto de inflexão na vida curta, mas gloriosa, de um dos grandes santos do século XIX: São Gabriel de Nossa Senhora das Dores, conhecido como "o santo dos jovens, dos milagres e do sorriso".3

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Vivaz, gentil e cheio de afeto

Nascido em 1º de março de 1838, em Assis, foi ele batizado no mesmo dia com o nome de Francisco, em honra ao Poverello. Undécimo filho de uma família de treze irmãos, seu pai, o advogado Sante Possenti, exercia na época o cargo de prefeito. A mãe, Angese Frisciotti, pertencia a uma família de nobre ascendência, e morreu quando ele tinha apenas quatro anos.

Apesar de possuir um coração propenso à generosidade e simpatia, imperava no espírito daquele terno menino um temperamento indômito que, quando contrariado, se exteriorizava inúmeras vezes em ímpetos de cólera, durante os quais seus olhos escuros tornavam-se brilhantes e os pés batiam no chão com energia.

Tendo ele três anos de idade, a família Possenti transferiu-se para Spoleto, onde transcorreriam sua infância e adolescência. Ali Francisco se distinguiu por seu caráter vivaz, cheio de afeto, gentil, palavra fácil e cheia de graça, voz sonora e olhar penetrante. Seu diretor espiritual, o padre Norberto Cassinelli assim o descreve: "Reunia em si muitos dotes dificilmente encontráveis numa só pessoa. Era em verdade belo de alma e de corpo".4

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"Eu não vivia senão por um pouco de fumaça!"

Esse temperamento amável e privilegiado não excluía o amor ao risco, tão comum na adolescência. O comandante da guarnição militar de Spoleto, grande amigo de seu pai, instruíra o jovenzinho a manejar com certeira pontaria a pistola e o fuzil. Sendo a caça seu lazer favorito, em um ano ganhou como presente de Natal uma bela escopeta... que não deixaria de ocasionar sobressaltos e preocupações a seu progenitor.

Aos 13 anos começou a frequentar a escola dos jesuítas, onde se sobressaía a todos os companheiros. Ele "era o preferido para declamar nas soirées acadêmicas. [...] Todos o queriam, tudo lhe sorria, tudo corria de acordo com seus desejos... Seu maior gosto era brilhar nas festas, nos saraus e no teatro".5

Também o baile constituía para ele grande motivo de atração. Dançava com tal habilidade que se tornou conhecido pelo apelativo de "il ballerino", e como tal animava S Gabriel de N. Sra das Dores.jpgos mais cotados salões da cidade.

Esses momentos passados em frívolas distrações atormentaram depois sua consciência, levando-a a exclamar com frequência: "Ó, vaidade de meus passatempos!... Que cegueira a minha!... Eu não vivia senão por um pouco de fumaça!...".6

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Um cilício sob as roupas elegantes

Porém, o jovem Francisco professava no seu interior uma fé pura e sincera. "Nunca se aproximava dos Sacramentos sem deixar transparecer os profundos sentimentos de fé e de religioso respeito dos quais esjotava compenetrado"7, declarou um dos seus mais íntimos amigos da época. "Quantas vezes o vi de mãos juntas, olhos umedecidos pelas lágrimas e como que arrebatado em profundos pensamentos!".8

Sobretudo, ninguém podia imaginar que aquele jovem aplaudido e aprovado por todos levava, sob as roupas elegantes e luxuosas, um rude cilício de couro cravejado de agudas pontas de ferro. No vaivém superficial dos acontecimentos, o anseio de trilhar algum dia na vida religiosa começava a despontar em sua alma. Faltavam, todavia, alguns lances decisivos para dar o derradeiro adeus ao mundo.

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Árdua renúncia, feita com alegria

Após a morte da mãe, sua irmã mais velha, Maria Luísa, fora para ele um de seus principais esteios. Muito formosa, encontrava- -se ela na flor da idade quando irrompeu em Spoleto uma assoladora epidemia de cólera, da qual foi a primeira vítima... A morte da jovem, ocorrida no ano de 1855, causou em Francisco o impacto de um raio.

Disso se valeu a Providência para abrir-lhe os olhos sobre sua vocação. Logo após o falecimento, ele expôs a seu pai a resolução de ingressar num convento. Este, entretanto, recusou sua autorização, temendo que tal desejo fosse o fruto efêmero de um momento de dor. Receio, na aparência, confirmado, pois, com o correr do tempo, as atrações do mundo começaram a abafar de novo aquele anelo interior... "Podia eu" - escreveria depois Francisco a um de seus companheiros - "gozar de mais prazeres e diversões? E o que ficou de tudo aquilo? Nada mais do que vergonha, temores e turbações".9

Foi nessa situação que veio dar-se o crucial encontro com a Sacra Icona, graças ao qual o renitente jovem decidiu abraçar para sempre a vida religiosa.

Poucos dias depois desse episódio, em 5 de setembro, a mais seleta sociedade de Spoleto reunia-se no salão de cerimônias do Liceu Jesuíta, para assistir à distribuição dos prêmios de fim de curso. Enquanto presidente da Academia Literária, Francisco ocupava no salão um lugar proeminente.

Chegada a hora de subir ao cenário, a assistência prorrompeu em exclamações de entusiasmo, vendo um adolescente de dezoito anos apresentar- se com tanta elegância e distinção. "Aquele timbre de voz, aquela sonoridade, aquela vocalização e, sobretudo, aquela graça de expressão e de gestos eletrizavam e sacudiam os corações mais apáticos".10 Terminado o discurso, todos desejavam felicitá-lo, aclamá-lo, cumprimentá-lo, e ele respondia com seu habitual sorriso.

A decisão, porém, estava tomada. No dia seguinte, ele partiria para uma mudança de vida definitSão Gabriel de Nossa Senhora das Dores.jpgiva. Com apenas 18 anos, trocava um brilhante porvir por uma vida de renúncia e recolhimento. Dava, sim, um passo árduo, mas com o coração pervadido de alegria.

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Passionista para sempre

Na manhã seguinte, Francisco partiu feliz de Spoleto em direção a Loreto, onde passou alguns dias estreitando os laços de amor e devoção a Maria Santíssima, no célebre Santuário.

De lá, dirigiu-se a Morrovalle para dar início ao noviciado passionista. "Ele, o elegante bailarino, o brilhante animador dos salões de Spoleto, escolheu entrar no austero Instituto dos Passionistas, fundado em 1720 por São Paulo da Cruz, com a missão de anunciar, através da vida contemplativa e do apostolado, o amor de Deus revelado na Paixão de Cristo".11

A mudança do nome para Gabriel de Nossa Senhora das Dores marcou a morte para a vida passada e o começo da caminhada nas vias da perfeição. Quando, em conversa com seus companheiros de convento, o assunto recaía sobre os acontecimentos do mundo, ele a interrompia com um sereno sorriso: "Por que falarmos daquilo que temos de abandonar para sempre? Deixem que os mortos enterrem seus mortos".12

Não pensemos, entretanto, que a adaptação à austera vida religiosa foi fácil para aquele jovem de vida acomodada. Acostumado às comidas finas, "os insípidos alimentos do pobre convento passionista causavam-lhe uma repugnância invencível. Apesar dos protestos de sua natureza, insistia ele em comê-los, até que seus superiores, compadecidos, permitiram-lhe, temporariamente, algum alívio".13 O mesmo acontecia com outros aspectos de observância da disciplina, mas ele fazia questão de cumprir eximiamente os horários e obrigações do noviciado, por muito esforço que isso lhe custasse, dada sua delicada compleição.

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Amor à Paixão de Cristo e a Maria Santíssima

Durante sua vida de religioso, nele sobressaía, sem dúvida, um arraigado amor à Paixão do Senhor. Tal veneração sentia pelos sofrimentos de Jesus que nunca se separava do crucifixo: "Quando conversava, mantinha-o dissimuladamente na mão e o apertava com carinho; quando dormia, colocava-o sobre o peito; quando estudava, punha-o junto ao livro e, de vez em quando, o fitava e osculava com tanto afeto e fervor, que a imagem de metal foi-se gastando até ficarem apagados todos os traços da fisionomia".14

A essa devoção característica da congregação em que ingressara, no entanto, unia-se um amor "entusiasta, engenhoso e aceso à Santíssima Virgem".15 Seu famoso Credo di Maria revela-nos o encanto dessa alma apaixonada pela Mãe de Deus:

"Creio, ó Maria, [...] que sois a Mãe de todos os homens. [...] Creio que não há outro nome, fora do nome de Jesus, tão transbordante de graça, esperança e suavidade para aqueles que o invocam. [...] Creio que quem se apoia em Vós não cairá em pecado, e quem Vos honra alcançará a vida eterna. [...] Creio que vossa beleza afugentava todo movimento de impureza e inspirava pensamentos castos".16

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Curta existência, pontilhada de atos heroicos

Na mente do noviço Gabriel, não havia espaço para nenhum outro pensamento a não ser Jesus e Maria. E sentia uma tão entranhada necessidade de levar às últimas consequências sua entrega a Deus e a Maria Santíssima que, certa vez, ao ouvir os passos de seu diretor espiritual, abriu a porta da cela e, arrojando-se a seus pés, lhe suplicou: "Padre, se achar em mim qualquer coisa, por pequena que seja, que não agrade a Deus, eu, com sua ajuda, quero arrancá-la a todo custo!". 17 O sacerdote respondeu-lhe que, no momento, nada via, contudo não deixaria de alertá-lo ao perceber algum sinal. Com essa garantia, o dócil religioso acalmou-se completamente.

Sao Gabriel de N.Sra. Dores.jpg
 Reconhecendo na hora suprema sua fraqueza, o santo repetia:
"Meus méritos são as vossas chagas, Senhor!"


Urna contendo os restos mortais do santo, no Santuário de
São Gabriel de Nossa Senhora das Dores - Isola del Gran Sasso (Itália)

Sua curta existência foi pontilhada de atos admiráveis, pois tudo praticava com espírito de inteira elevação e sublimidade: "Nossa perfeição não consiste em fazer coisas extraordinárias, mas em executar bem as ordinárias"18, costumava dizer.

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O último sorriso

Após um ano e meio de noviciado, em fevereiro de 1858, Gabriel deu início aos estudos para o sacerdócio, passando a morar finalmente no convento de Isola del Gran Sasso, onde viria falecer. Em 25 de maio de 1861, recebeu as ordens menores na Catedral de Penne. Pelos arcanos desígnios da Providência, porém, não chegaria a tornar-se presbítero.

No final desse mesmo ano, uma terrível tuberculose o acometeu. Ora, longe de impedir-lhe o avanço nas vias da virtude, a fatal enfermidade servia-lhe para escalar com mais rapidez os píncaros da santidade. Deus dispôs que ele fosse sendo consumido aos poucos pela doença, para aumentar-lhe os méritos e dar aos outros ocasião de se edificarem com seu exemplo.

No leito de morte, restava-lhe ainda enfrentar o pior drama da sua vida: os derradeiros assaltos do demônio e a terrível provação decorrente de uma "noite escura da alma".19 Entretanto, também dessa última prova saiu vencedor. O sacerdote que lhe prestava assistência na hora suprema ouviu- o repetir três vezes, em curtos intervalos de tempo, esta frase de São Bernardo, pela qual ele reconhecia diante de Deus sua própria fraqueza: "Vulnera tua, merita mea. Meus méritos são vossas chagas, Senhor!".20

Na manhã de 27 de fevereiro de 1862, com o coração transbordante de alegria, as mãos cruzadas sobre o peito, apertando o crucifixo e a imagem da Virgem Dolorosa, Gabriel sorriu pela última vez, extasiado, ao contemplar com os olhos da alma Aquela a quem servira na Terra com tanta doçura. O "santo do sorriso" tinha, então, apenas 24 anos de idade.

No sesquicentenário de sua morte, São Gabriel de Nossa Senhora das Dores continua sendo, para a juventude atual, um inapreciável exemplo de renúncia intransigente ao pecado, de amor entusiasmado à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo e de devoção entranhada a Maria Santíssima. (Revista Arautos do Evangelho, Fev/2012, n. 122, p. 32 à 35)

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Pe. José de Anchieta, O Apóstolo do Brasil

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Sua caravela chegou ao porto da Bahia em 1553. Local tido como um "paraíso terrestre". O jovem José encantou-se com a Terra de Santa Cruz. Fez da conversão da gente da terra a sua meta. Viveu como missionário, agiu como herói, morreu como santo.

Com 19 anos, Missionário na Terra de Santa Cruz

O moço de 19 anos que chegava à Terra de Santa Cruz vinha com as melhores disposições espirituais possíveis para exercer sua missão. Embora tão jovem e BEATO_ANCHIETA_1.jpgnão tendo ainda sido ordenado sacerdote, Irmão José era dos primeiros missionários jesuítas que se estabeleciam na nova terra. Sua meta era conquistar almas para Cristo.

Ele fazia parte da comitiva do segundo Governador Geral do Brasil Dom Duarte da Costa e chegou a Salvador, na Bahia de Todos os Santos, no dia 13 de julho do ano de 1553.

Da Terra de dimensões continentais em que aportou nunca mais saiu. Amou a Terra, amou seu povo. Evangelizou as "gentes brasílicas", deu rumo a sua formação. Identificou-se com suas aspirações, sem perder sua própria identidade.

Origens de Anchieta

Aquele jovem noviço tinha nascido em São Cristóvão, Tenerife, uma das ilhas do Arquipélago das Canárias, a 19 de março de 1534, dia da festa litúrgica de São José, fato determinante para que ele também recebesse esse nome no batismo: José de Anchieta.

José de Anchieta pertencia a uma próspera família. Seu pai, Juan Lopes de Anchieta, era da província de Guipuscoa, no País Basco. Por precaução, Juan havia mudado para as Canárias. E ele tinha lá suas razões para isso: ele tomou parte na Revolta dos Comuneiros, feita contra o imperador espanhol Carlos V e havia sido condenado à morte.

Juan Lopes acabou sendo salvo da pena capital por intercessão de um ilustre parente militar, o capitão Inácio de Loyola, que, mais tarde, veio a ser o fundador dos jesuítas, os religiosos da Companhia de Jesus. Sua mãe foi Dona Mência Dias de Clavijo y Llarena. Ela era natural das próprias Ilhas Canárias. Seu avô havia sido um dos conquistadores espanhóis.

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Formado num tempo de turbulência

Quando ainda criança, Anchieta teve oportunidade de estudar com religiosos. Ao completar 14 anos, juntamente com um irmão de maior idade, ele já estava iniciando seus estudos na célebre Universidade de Coimbra. Cursou ali o renomado Colégio de Artes. Recebeu nessa ocasião uma educação própria de seu tempo, com uma formação principalmente filológica e literária para que aperfeiçoasse a língua latina e já visando um aperfeiçoamento futuro. Maiores ciências ele as adquiriu nas escolas dos padres da Companhia de Jesus. Cresceu nelas de tal maneira que em breve tempo estava bem formado em todo gênero de humanidades.

Foi com 17 anos de idade que José de Anchieta ingressou na Companhia de Jesus, a Ordem Religiosa fundada por Santo Inácio em 1539 e que foi aprovada pelo Papa Paulo III com a publicação da bula "Regimini Militantis Eclesiae", de 1540. Também foi por essa ocasião que José de Anchieta --ainda estudante de 17 anos-- fez seu voto particular de castidade diante do Altar de Nossa Senhora, na Catedral de Coimbra.

Na época do estudante José de Anchieta o mundo ocidental estava vivendo uma crise: passava por uma autêntica e profunda revolução cultural e religiosa. O Renascimento, aproveitando-se de tendências latentes no homem decadente do fim da Idade Média, manejava as idéias, influenciando e marcando profundamente os acontecimentos nas artes e mentalidades. No campo religioso, a reforma protestante, codificada por um frade apóstata e seguindo a esteira da renascença, produzia devastações no seio da unidade do cristianismo.

Foi num mundo assim conturbado que no ano de 1553, no final de seu noviciado, José de Jose-de-Anchieta.jpgAnchieta fez seus primeiros votos como jesuíta. Com esses votos, seus receios de não poder permanecer na Ordem de Santo Inácio foram dissipados.

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Doença e Santa Obediência o trazem ao Brasil

Logo após seu ingresso na Companhia de Jesus, ele foi acometido por uma doença ósteo-articular. Se essa enfermidade continuasse a agredi-lo, suas esperanças de ser jesuíta cairiam por terra: ele não poderia continuar na Ordem. Os votos lhe garantiam que estava são e que poderia continuar entre os filhos de Santo Inácio.

Os médicos da época acreditavam que os ares do Novo Mundo seriam benéficos para sua total recuperação e aconselharam sua transferência para o outro lado do Oceano Atlântico. Então, seus superiores o enviaram para exercer uma missão em terras do domínio português, na América.

Ele era um bom religioso. Entusiasmado, obedeceu prontamente seus superiores: atravessou o oceano, chegou ao Brasil para evangelizar seu povo e daqui nunca mais saiu.

Na travessia do oceano o mais jovem dos jesuítas na esquadra do Governador Duarte da Costa dava mostras de que sua saúde estava sendo recuperada a cada instante. Quando aportou em Salvador, ele estava praticamente curado. O tempo na nova terra completaria a cura total.

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Ação preternatural ou fato providencial?

As caravelas do novo Governador Geral Duarte da Costa traziam cerca de 250 pessoas. Além do noviço José de Anchieta, fazia parte da esquadra o também jesuíta Padre Manuel da Nóbrega que era seu superior e seria acompanhado por Anchieta no início de sua missão.

Os dois jesuítas já tinham destino certo. Eles apenas passariam por Salvador e logo deveriam dirigir-se para a Capitania de São Vicente. Ali exerceriam a missão de catequizar colonos e nativos.

A viagem até a "terra de missão" era difícil. Não havia outro meio de realizá-la a não ser por mar. Duas naus saíram de Salvador com destino a São Vicente levando Anchieta, Nóbrega e outros padres jesuítas. Ainda no Sul da Bahia uma tempestade gigantesca surpreendeu as duas embarcações. Uma delas foi arremessada contra os rochedos e espatifou-se. Por milagre, ninguém morreu. A nave em que estava Anchieta, acabou ficando encalhada nos recifes, ainda inteira.

Foi uma noite de terror para os viajantes. Gigantescas ondas ameaçavam destruir a nau que ainda havia restado. No dia seguinte, o mar amanheceu calmo e os viajantes conseguiram chegar à terra. Parece até que uma fúria de origem preternatural, diabólica, antevendo os sucessos que teriam os missionários, tentava impedir que eles chegassem a seu destino.

Pior para o demônio: Ali mesmo Anchieta começou sua missão... com sucesso. Ao procurar comida em terra firme, encontrou-se com índios do lugar. Ao chegar na aldeia deles, viu uma indiazinha muito doente, já à beira da morte. Anchieta a instruiu e batizou dando-lhe o nome de Cecília. Logo depois, a primeira indiazinha brasileira batizada por Anchieta morreu.

Enquanto o barco era consertado, Anchieta ainda esteve outras vezes na aldeia para ensinar o evangelho aos índios.  Chegando a hora da partida, com a consciência tranquila, Anchieta pensava: "O acidente com o barco foi uma obra permitida pela Providência Divina para salvar a inocente Cecília, que estava predestinada." E ele tinha razão.

Sua vida está cheia de fatos semelhantes que indicam os desígnios de Deus Nosso Senhor de tê-lo como instrumento de salvação para muitas almas. Aquele jovem franzBEATO JOSE DE ANCHIETA_.jpgino, doente, tinha a alma maior que o corpo. Sua fé exuberante, acalentava uma esperança que, por amor a Deus, seria capaz de evangelizar um país, formar um povo, salvar um país inteiro.

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Um Apóstolo na Capitania de São Vicente

O missionário José de Anchieta chegou a Salvador em junho de 1553 e logo dirigiu-se a São Vicente.

Em pouco tempo ele já estava colocado no centro das atividades da missão. Com seus dotes inatos de comunicador, e com sua sede de almas, conseguiu com os índios um amplo entendimento. Tornou-se logo amigo de indígenas e colonizadores e por ambos era respeitado.

Não limitou seu trabalho às redondezas da pequena São Vicente. Subiu a Serra que costeava a Capitania e chegou ao planalto que estava depois dela. O Planalto de Piratininga era povoado por milhares de índios que viviam em aldeias distintas. Para Anchieta elas eram almas redimidas pelo sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo e sua missão consistiria em conquistá-las para Cristo, conduzi-las para a Igreja para serem instruídas, formadas, civilizadas.

Sua ação era ligeira, meticulosa, apostólica, eficiente. Tinha metas audaciosas, plantava bases para o futuro. Assim foi que em 1554, no dia 25 de janeiro, festa da Conversão de São Paulo Apóstolo, Anchieta participou da fundação do colégio da vila de São Paulo de Piratininga, onde também foi professor. Junto ao colégio foi edificada uma capela provisória na qual foi celebrada a primeira missa em 25 de agosto.

Estava nascendo o núcleo de uma cidade que se tornaria uma das maiores metrópoles do mundo: São Paulo. Anchieta construiu ainda um seminário perto do Colégio de Piratininga e nele também dava aulas. Tanta ação, tanto fruto já colhido e não havia passado seis meses desde que ele chegara à Capitania.

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Ela falava o português, o castelhano, o latim e a língua brasílica.

Decifrar o tupi foi uma das tarefas que Nóbrega deu a Anchieta. Em apenas seis meses, ele conseguiu entender e falar a língua dos índios. Em um ano ele a dominava com perfeição a ponto de criar uma gramática. Além da gramática indígena, Anchieta dedicava seus dias a ensinar o latim e o português a curumins e índios adultos. Aos irmãos jesuítas, ensinava a língua tupi.

Depois de cumprir suas obrigações religiosas e de exercer todo o trabalho que tocava a ele executar, ainda estava longe a hora do repouso para ele. Era à noite, quando todos já dormiam, que ele escrevia manuais para os alunos, cartas sobre o trabalho dos jesuítas e obras diversas, entre elas um dicionário de tupi e um tratado sobre a flora, a fauna e o clima da Capitania de São Vicente.

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Lutou contra invasores, unificou pela Fé

No ano de 1555, o Brasil enfrentou graves problemas com a tentativa de franceses calvinistas de estabelecer uma colônia na região do Rio de Janeiro. Os invasores contavam com o apoio de índios da região.

Anchieta participou ativamente da luta pela expulsão dos franceses. A confiança que os índios tinham nele foi decisiva. Nas batalhas finais, no Rio de Janeiro, ele estava animando os combatentes brasileiros. Era amigo de Estácio de Sá e esteve junto dele nas últimas batalhas.

Ele agia em todos os setores do tecido social e religioso da nascente nação. No campo Anchieta_.jpgreligioso, ele exerceu o cargo de provincial da Companhia de Jesus entre os anos de 1577 a 1587.  O trabalho de Anchieta foi decisivo para a implantação do catolicismo no Brasil. Com seu conhecimento, fé e vontade de evangelizar, percorreu a pé, a cavalo, em embarcações, boa parte do território brasileiro. Assim contribuiu para manter unificado o país naquela época e nos séculos seguintes.

Ele foi quem lançou os fundamentos da catequese e educação dos jesuítas no Brasil. Foi ele também quem começou a reverter o quadro iniciado desde o descobrimento, em que os nativos eram vistos apenas como propriedade da Coroa e, como tal, passíveis de serem escravizados.

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Agindo como apóstolo, plantou cultura

Anchieta deixou sua marca também no campo cultural. Sua obra de conteúdo eminentemente religioso constituiu-se na primeira manifestação literária na Terra de Santa Cruz contribuindo fortemente para a formação da nascente cultura brasileira.  Além de suas cartas, sermões e poesias, ele escreveu uma Gramática da língua tupi, idioma que ele dominava perfeitamente. Escreveu "De Gestis Mendi de Saa", um livro que tratava dos feitos do Governador Geral Mem de Sá.

É famoso seu "Poema da Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus", que foi escrito originariamente nas areias da praia de Iperoig, no litoral da costa da Capitania. Nele se manifesta não só a erudição e estro do poeta, mas, refulgem no texto as melhores doutrinas sobre a Virgem Maria e a expressão de uma devoção e de um amor extraordinário à Santa Mãe de Deus.São também de autoria de Anchieta peças de teatro de cunho religioso e formativo. Entre elas está o "Auto da Pregação Universal" e ainda o "Na Festa de São Lourenço", também chamada de "Mistério de Jesus".

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A Língua tupi, a evangelização e o descanso

Era destro em quatro línguas: portuguesa, castelhana, latina e brasílica. Decifrar o tupi foi uma das tarefas que Nóbrega confiou a Anchieta. Em seis meses, ele completou o aprendizado da língua e, em um ano, a dominava com perfeição.  Dois anos depois de ter chegado ao Brasil, escreveu a sua "Arte de Gramática da Língua Mais Usada na Costa do Brasil".

Além da gramática, Anchieta ensinava o latim e o português para os curumins (meninos) e para os índios adultos. Aos irmãos jesuítas, ensinava a língua tupi.

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 Relíquia do Pe. José de Anchieta: Fêmur exposto 
na Igreja do Páteo do Colégio, em São Paulo

O repouso não vinha para ele logo que a noite chegava. Era nessa hora que escrevia manuais para os alunos, cartas sobre o trabalho dos jesuítas e obras diversas, entre elas um dicionário de tupi e um tratado sobre a flora, a fauna e o clima da Capitania de São Vicente. Era tarde, quando ia dormir.

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Viveu com missionário, agiu como herói, morreu como santo

A vida do Padre José de Anchieta é como um sopro encorajador: é exemplo. Entusiasma e arrasta os que têm Fé. Convida os católicos a viver na caridade e no ardor missionário que evangeliza e santifica. Para os índios, ele foi médico, professor, foi amigo e defensor. Tornou-se o elo de ligação dos índios e colonos com os padres jesuítas, com a Igreja e a nação que estava sendo forjada.

Mas, José de Anchieta foi sobretudo sacerdote. Cuidava das doenças e feridas das almas, da espiritualidade de todo o povo. Por isso mesmo é que lhe foram dados vários títulos que o homenagevam, sendo que o que melhor lhe cai é o de "Apóstolo do Novo Mundo", que para nós pode ser "traduzido" como "Apóstolo do Brasil".

Com 63 anos, Anchieta faleceu no povoado que ele mesmo havia ajudado a edificar em 1569: Iritiba (a atual Anchieta), na Capitania do Espírito Santo. Era o dia 9 de junho de 1597 quando José de Anchieta entregou sua alma a Deus. Foi beatificado pelo Papa João Paulo II, em 1980, quando então foi nomeado "Apóstolo do Brasil". (JSG)

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Fontes:

 

http://www.catedralsaomiguel.org.br/beato_jose.p
http:// www.histedbr.fae.unicamp.br
http://www.bibvirt.futuro.usp.br

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São José: O varao a quem Deus chamou de pai

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São José, o homem justo por excelência, o glorioso esposo de Maria e pai legal do Filho de Deus, é certamente um dos santos mais venerados pela piedade popular

Há certos homens, ao longo da História, cuja grandeza ultrapassa qualquer lenda e esgota mesmo a mais rica capacidade de imaginação. Tais homens parecem ser objeto de uma especial predileção de Deus, o qual Se compraz em adornar cuidadosamente suas almas com o brilho das virtudes e de raríssimos dons. Predestinados desde o nascimento, sua vida se desenvolve em meio a aventuras extraordinárias e assombrosas que ora lhes favorecem o desempenho da missão, ora levantam-se como obstáculos intransponíveis, dando ocasião a lances de confiança e audácia que tornam suas pessoas ainda mais dignas de admiração.

No Antigo Testamento encontramos narrativas dessas a cada passo.

Extasiamo-nos diante do poder de um Moisés, que com o simples gesto de levantar seu cajado dividiu as águas do mar em duas gigantescas muralhas líquidas; ou perante a serena autoridade de Josué, que não duvidou em dar ordens ao próprio sol para deter o seu curso. Mais adiante, impressionam-nos a força de Sansão, ao carregar nos ombros as portas de Gaza, e o zelo ardoroso do profeta Elias, fazendo cessar a chuva durante três anos. A todos eles a Providência Divina concedeu o domínio sobre a natureza, essa fé que move montanhas e as faz saltar como cabritos...Tais prodígios sublinhavam o poder justiceiro do Criador e visavam, sobretudo, educar uma humanidade manchada pelo pecado original, sobre a qual ainda não se haviam derramado os benefícios da Redenção.

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SAO JOSE_3.jpg
Em todas as obrigações que, como pai, 
lhe competiam, São José praticou de
forma excelsa a virtude da fortaleza.

Uma nova economia da graça

Chegada a plenitude dos tempos, as manifestações da onipotência divina, longe de diminuir, atingiram um auge de profundidade e esplendor.

No Novo Testamento, porém, a grandeza se esconde muitas vezes sob os véus da comum existência humana, e isso é permitido por Deus para aumentar nossos méritos e acrisolar ainda mais nossa fé.

O exemplo paradigmático dessa nova economia da graça, nós o vemos realizar-se num varão cuja vida transcorreu na humildade e no silêncio, mas que mereceu ouvir dos lábios do Homem-Deus o doce nome de pai! Sem dúvida, Moisés, ao abrir o mar em duas partes, ou Josué, ao parar o sol, marcaram de forma indelével as futuras gerações. Mas, o que é ter sujeitado os elementos, criaturas inanimadas, diante da honra suprema de ser obedecido por Aquele de quem canta o salmista: "Mais forte que o bramido das ondas caudalosas, mais poderoso que o rebentar das vagas, é o Senhor lá nas alturas" (Sl 92, 4), e que mais tarde foi visto por Malaquias quando disse: "Para vós, que temeis o meu nome, nascerá o Sol da Justiça trazendo salvação em suas asas" (Ml 3, 20)? O que significa ter carregado às costas as portas de Gaza, em confronto com a glória de estreitar nos braços Aquele que afirmou de Si mesmo: "Eu sou a porta das ovelhas" (Jo 10, 7)? Caberá alguma comparação entre o profeta que fez parar a chuva e o patriarca cujas preces aceleraram a "chuva do Justo vindo das alturas" (cf. Is 45, 8)?

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Uma das mais altas vocações da História

São José, o homem justo por excelência, o glorioso esposo de Maria e pai legal do Filho de Deus, é certamente um dos santos mais venerados pela piedade popular. No entanto, quase só ouvimos falar dele como "o artesão de Nazaré" ou "o padroeiro dos operários". Esses títulos são muito legítimos, mas estão longe de nos dar idéia do píncaro de santidade  ao qual Deus houve por bem elevá- lo. Ele nunca será devidamente conhecido e venerado por nós se - repetindo em nossa época a triste cegueira dos habitantes de Nazaré - o considerarmos apenas como o pobre carpinteiro da Galiléia. Para não nos tornarmos culpados de um erro que poderia ser qualificado de "calúnia hagiográfica", procuremos analisar a verdade a respeito deste varão destinado a uma das mais altas vocações da História.

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Deus escolhe sempre o mais belo

Deus Todo-Poderoso, para quem "nada é impossível" (Lc 1, 37) e que tudo governa com sabedoria infinita, possui algo que poderíamos chamar de sua "única limitação": ao criar, Ele nada pode escolher de menos belo e perfeito, ou que não seja para sua glória. Desde toda a eternidade, ao determinar a Encarnação do Verbo, quis o Pai que - apesar das aparências de pobreza e humildade através das quais Se mostraria, e que contribuiriam para sua maior exaltação - a vinda de seu Filho ao mundo se revestisse da suprema pulcritude conveniente a Deus. Assim, dispôs que Ele fosse concebido por uma Virgem, concebida por sua vez sem pecado original, unindo em Si as alegrias da maternidade à flor da virgindade. Porém, para completar o quadro, tornava-se necessária a presença de alguém que projetasse na terra a própria "sombra do Pai". Para tal missão Deus destinou José, ao qual poderíamos aplicar as palavras da Escritura, referindo- se a seu antepassado Davi: "O Senhor escolheu para Si um homem segundo o seu coração" (1 Sm 13, 14).

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Varão justo por Excelência

Levando em conta o axioma latino: "nemo summus fit repente" e o acertado dito de Napoleão: "a educação de uma criança começa cem anos antes de ela nascer", é provável que, em atenção à sua missão e ao seu papel de educador junto ao Menino-Deus, José tenha sido santificado já no seio materno, como o foi João Batista no ventre de Santa Isabel. Essa tese é defendida por diversos autores e pode sintetizar- se nas palavras de São Bernardino de Sena: "Sempre que a graça divina escolhe alguém para algum favor especial ou para algum estado elevado, concede-lhe todos os dons necessários à sua missão; dons que a ornam abundantemente".

O louvor de José, tal como o Evangelho no-lo traça, encerra-se numa única e breve frase: era justo. Tal elogio, à primeira vista de um laconismo desconcertante, nada tem de medíocre. Na linguagem bíblica, o adjetivo "justo" designa todas as virtudes reunidas. No Antigo Testamento, justo é aquele a quem a Igreja dá o nome de santo: justiça e santidade exprimem a mesma realidade.

O próprio silêncio das Escrituras a seu respeito nos revela um aspecto primordial de sua perfeição: a contemplação. São José é o modelo da alma contemplativa, mais desejosa de pensar que de agir, embora seu ofício de carpinteiro o levasse a consagrar tanto tempo ao trabalho. Nele vemos realizar-se o ensinamento de São Tomás: a contemplação é superior à ação, porém, mais perfeita ainda é a junção de uma e de outra numa mesma pessoa.

Ao serrar a madeira, fabricar um móvel ou um arado, José mantinha sempre seu espírito voltado para o sobrenatural, elevando-se para o aspecto mais sublime das coisas e considerando tudo sob o prisma de Deus. Suas atitudes refletiam a seriedade e a altíssima intenção com a qual sempre agia, e isso contribuía para o maior primor dos trabalhos por ele executados.

Sua humilde condição de trabalhador manual em nada lhe diminuía a nobreza. Reunia em si, de forma admirável, as duas classes sociais: como legítimo herdeiro do trono de Davi, conservava em seu porte e semblante a distinção e a elegância próprias a um príncipe, aliando-as, porém, a uma alegre simplicidade de caráter. Para ele, mais importante do que a nobreza de sangue é aquela que se alcança pelo brilho da virtude; e esta, ele a possuía largamente.

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Deus concedeu a São José todas as graças
já desde a infância: piedade, virgindade,
prudência, perfeita fidelidade ...

 A Providência, entretanto, o destinava a alcançar a mais alta honra que se possa dar a uma criatura concebida no pecado original e o colocava em desproporção com todo o restante dos homens. Diz São Gregório Nazianzeno: "O Senhor conjugou em José, como num sol, tudo quanto os outros santos têm, em conjunto, de luz e de esplendor".

Todas as glórias acumulam-se neste varão incomparável, cuja existência terrena transcorre dentro de uma sublimidade ignorada por seus conhecidos e compatriotas, num silêncio e apagamento quase completos.

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Admirável consonância entre duas almas virgens

No Antigo Testamento, a virgindade ainda não adquirira o prestígio do qual passou a gozar na Era Cristã. Muito pelo  contrário, quem não constituísse família, ou se visse impossibilitado de gerar filhos, era considerado maldito por Deus. "A espera do Messias dominava a tal ponto os espíritos, que o desprezo do casamento equivalia a uma recusa desonrosa de contribuir para a vinda d'Aquele que havia de restaurar o reino de Israel" (1). De acordo com a opinião generalizada, José, movido por uma especial moção do Espírito Santo, decidira permanecer virgem por toda a vida. Porém, não querendo singularizar- se, contrariando os costumes de seu tempo, resignara-se a contrair matrimônio, convencido de que o Senhor, tendo lhe inspirado esse bom propósito, o ajudaria a levá-lo a cabo.

Cedendo, pois, às exigências sociais, resolveu pedir a mão de Maria, a qual ele provavelmente já conhecia, pois ambos pertenciam à mesma tribo e habitavam na mesma aldeia. Tudo indica que naquela época os pais de Maria haviam falecido e Ela vivia sob a tutela de algum parente. Sem levar em conta a opinião da jovem, seu tutor apenas Lhe comunicou ter aceito o pedido de um pretendente a ser seu marido.

É sabido que Maria, desde a infância, consagrara ao Senhor sua virgindade. Entretanto, acostumada a obedecer, inclinou-Se ante a decisão de seus parentes, acreditando ser essa a manifesta vontade da Providência. Se conservava algum receio, deve este ter-se dissipado quando soube que o escolhido era José, o nobre descendente da estirpe de Davi, em cuja alma Ela já vira, por seu aguçado dom de discernimento, as altíssimas qualidades postas por Deus.

Antes dos esponsais, Maria precisava dar a conhecer ao seu noivo o voto de virgindade, sob pena de o matrimônio ser nulo. Fê-lo de forma séria e decidida, falando com toda a simplicidade de seu inocente coração. José pensou estar ouvindo uma voz do Céu e reconheceu, emocionado, a mão da Providência atendendo às suas preces. É impossível ter idéia do grau de concórdia dessas duas almas, ao se revelarem mutuamente seus mais íntimos mistérios. Desde esse instante, José passou a ser o modelo perfeito do devoto de Nossa Senhora.

Podemos bem imaginar que, já nesse primeiro encontro, a graça o tocou de maneira especial, levando-o a consagrar-se como escravo de amor Àquela que, mais do que esposa, já considerava como Senhora e Rainha.

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Proporcionado a Jesus e Maria

O contrato matrimonial deveria ser acertado entre as duas famílias.

Um ponto ao qual se costumava dar escrupulosa importância, sobretudo entre pessoas de nobre origem, era a igualdade de condições. Tanto Maria quanto José eram da tribo de Judá e descendentes de Davi. Mais, porém, do que qualquer requisito social, sobre aquele matrimônio pairava, desde toda a eternidade, um desígnio divino. Para a realização da vontade do Altíssimo, deveria o esposo ser proporcionado à esposa, o pai ao filho, a fim de sustentar com toda dignidade a honra de ser pai adotivo de Deus. E houve só um homem criado e preparado para essa missão, inteiramente à altura de exercê-la: São José. Ele estava na proporção de Jesus Cristo e de Maria Santíssima.

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Matrimônio de Nossa Senhora
e São José

 Para fazermos uma idéia exata da magnitude de sua personalidade, devemos imaginá-lo como sendo uma versão masculina de Nossa Senhora, o homem dotado de sabedoria, força e pureza bastantes para governar as duas criaturas mais excelsas saídas das mãos de Deus: a Humanidade santíssima de Nosso Senhor e a Rainha dos anjos e dos homens.

Em Israel os esponsais equivaliam juridicamente ao casamento de hoje.

A partir dessa cerimônia - na qual o noivo colocava um anel de ouro no dedo de sua prometida, dizendo: "Este é o anel pelo qual tu te unes a mim diante de Deus, segundo o rito de Moisés" - ambos passavam a pertencer de forma irrevogável um ao outro e a partir de então se consideravam esposos. Contudo, a coabitação era em geral adiada pelo prazo de um ano, para dar tempo à esposa de completar o enxoval e ao marido de preparar a casa. Maria e José, fiéis cumpridores da Lei, ativeram-se a todas essas formalidades.

Mas um segredo Divino envolvia seu caso concreto, do qual certamente nenhuma das testemunhas do acontecimento - parentes e amigos - chegou a suspeitar. Ali estavam "duas almas virgens que se prometiam mútua fidelidade, uma fidelidade que consistiria em guardarem ambos a virgindade" (2).

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Quanto mais uma pessoa sofre, mais é digna de amor

Nesse intervalo entre os esponsais e as bodas, Maria recebeu a embaixada do Arcanjo Gabriel. O Evangelho de Mateus deixa-o bem claro ao afirmar: "Antes de coabitarem, aconteceu que Ela concebeu por virtude do Espírito Santo" (Mt 1, 18). Supérfluo seria nos estendermos aqui sobre os detalhes da Anunciação e da Encarnação do Verbo, já tão conhecidos e tantas vezes comentados.

Um ponto apenas é preciso deixar bem claro: poucos dias depois desse acontecimento, Maria dirigiu-se apressadamente para o pequeno povoado das montanhas da Judéia onde habitavam seus primos, Zacarias e Isabel.

Boa parte dos comentaristas defende a idéia de que José acompanhou sua esposa na viagem de ida e, transcorridos três meses, foi buscá-La. Tal opinião parece bem fundada, pois a juventude de Maria e as dificuldades de um penoso percurso eram razões de sobra para mover a solicitude de um esposo fiel e zeloso, como era o seu.

Depois do regresso a Nazaré, não tardou ele a perceber os primeiros sinais da gravidez de sua desposada. No começo, relutou em acreditar, julgando-se vítima de uma alucinação.

Passados, porém, alguns dias, não pôde mais duvidar da realidade patente ante seus olhos: Maria trazia uma criança em seu seio.

Nesse momento eclodiu, como violento turbilhão, o drama na vida de São José. Talvez a provação mais terrível que uma mera criatura humana - fazendo abstração da Santíssima Virgem ao longo da Paixão - jamais tenha enfrentado. Essa era, entretanto, a divina vontade do Menino que Se formava nas puríssimas entranhas de Maria. Desejava Ele que seu nascimento viesse com o selo indelével da dor santamente aceita, para dar-nos a lição de que quanto mais uma pessoa sofre, tanto mais é digna de amor. O pai adotivo que escolhera como imagem de seu Pai Celestial, Ele o submetia a uma dura prova, dando-lhe oportunidade de levar seu heroísmo a alturas inimagináveis. Ao mesmo tempo, aparecia com maior esplendor a virgindade de Nossa Senhora.

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O herói da fé

A perplexidade de José não consistia, como pensaram alguns Padres antigos, em duvidar da fidelidade de sua esposa. Tal hipótese contunde a nossa piedade, pois desmerece a perfeição eminente alcançada pelo santo Patriarca e, ademais, Deus não permitiria que a honra virginal de Maria pudesse ser ferida por uma suspeita no espírito de José. O texto do Auctor imperfecti exprime com belíssimas palavras a postura dele diante do fato: "Ó inestimável louvor de Maria! São José acreditava mais na castidade de sua esposa do que naquilo que seus olhos viam, mais na graça do que na natureza. Via claramente que sua esposa era mãe e não podia acreditar que fosse adúltera; acreditou que era mais possível uma mulher conceber sem varão do que Maria poder pecar" (3).

Sua angústia tornava-se tanto mais lancinante quanto mais via resplandecer a virtude no rosto angelical de Maria. Por um lado, a evidência saltava- lhe aos olhos, por outro, considerava fora de cogitação a possibilidade de aquela criatura tão inocente ter cometido um pecado. Ora, se a concepção de Maria era obra sobrenatural o que fazia ele ali? Não estaria ofendendo a Deus, intrometendo- se num mistério para ele incompreensível, o qual se lhe afigurava como absolutamente divino? Não seria ele um intruso, atrapalhando os planos do Altíssimo? José não julgou. Suspendeu o juízo da carne ante os inescrutáveis desígnios de Deus. Subjugou a razão humana à fé inabalável e procurou uma saída para o caso, pois, como resume São Tomás. Desde o princípio descartou a hipótese de denunciá-La, como o exigia o Deuteronômio, segundo o qual a mulher deveria sofrer a pena de lapidação. Estava convicto da inocência de Maria e estremecia diante dessa idéia.

Sonho de S?o Jose.jpg
Jamais houve em São José dúvida
quanto à santidade de Maria

Existia também a opção do repúdio: a Lei de Moisés permitia ao homem despedir sua mulher, dando-lhe o libelo de divórcio. Mas essa possibilidade repugnava-lhe igualmente, porque atentaria contra a reputação da Santa Virgem. Numa pequena aldeia, onde todos os habitantes se conheciam, tal atitude daria margem a suspeitas sobre o comportamento de Maria: por qual motivo o marido A teria afastado de repente? No futuro, a Virgem traria sempre a marca de uma mulher rejeitada.

A solução encontrada por José não se achava nos livros da Lei, mas partiu de seu coração: "Resolveu deixá- La secretamente" (Mt 1, 19). Agindo assim, salvaguardava a fama de sua esposa, pois Ela seria vista como uma pobre jovem abandonada pela crueldade de um homem sem palavra. A culpa recairia toda sobre ele. Nesse passo de sua vida, José revelou o brilho alcandorado de sua nobre alma, sua sabedoria e sua humildade levadas ao grau heróico.

Com efeito, a ele poderíamos aplicar estas belas palavras de um autor francês: "O herói é um grande coração que se ignora, uma grande alma que se esquece de si mesma. (...) Todas as fraquezas de nossa pobre natureza humana estão concentradas em torno desse egoísmo que faz de cada um de nós o centro do Universo. O herói é aquele que rompeu esse círculo estreito onde todas as naturezas, até mesmo as mais dotadas, vegetam ou se estiolam. Esse "eu" que em alguns é rei, nele, durante toda sua vida, permanece escravo" (4).

Esqueceu-se completamente de si, preferindo desacreditar-se diante da opinião pública, a ver o prestígio de Maria manchado. Além do mais, renunciava também à sua própria felicidade: tinha de abandonar Nossa Senhora, o maior tesouro da terra. Isso era um sofrimento imenso, pois para ele o convívio com Maria significava um verdadeiro Paraíso.

D'Ela aprendera, nos seus gestos mais simples, lições excelsas de sabedoria e de bondade; ao contemplá-La, sentia-se mais próximo de Deus. E via-se agora obrigado a sacrificar aquilo que mais apreciava em sua vida! Passaria seus dias longe, venerando um mistério que não entendera.

Durante alguns dias, José maturou sua resolução, decidido a pô-la em prática. Numa noite enevoada e sem lua encontrou ocasião propícia, preparou seus pobres pertences e deitou-se para refazer as forças antes da partida. Pouco a pouco, por uma ação angélica, seu coração aflito serenou e ele adormeceu profundamente.

Como outrora com Abraão, o Senhor esperara até o último instante para deter o golpe fatal. No meio da noite apareceu-lhe um anjo, anunciando: "José, filho de Davi, não temas receber Maria por esposa, pois o que n'Ela foi concebido vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque Ele salvará o seu povo de seus pecados" (Mt 1, 20-21).

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"Os que semeiam entre lágrimas, recolherão com alegria" (Sl 125, 5)

É impossível medir o gozo de José ao despertar do sonho. Logo ao alvorecer, correu a encontrar-se com sua esposa. Mas como se sentia agora mais tomado pela veneração e ternura que culminavam no ardoroso desejo de servi-La! Certamente nada disse a Maria, mas a alegre expressão do seu semblante era mais eloqüente do que as palavras.

De joelhos, adorou a Deus no seio virginal de sua Mãe, primeiro tabernáculo no qual Se dignara habitar sobre a terra. Um Deus que também era seu filho, pois os dizeres do anjo manifestavam com clareza a autoridade a ele outorgada sobre o fruto de sua esposa: "um filho a quem porás o nome de Jesus".

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Paternidade nova, única e especial

A paternidade de São José em relação a Cristo tem sido um tema muito discutido pelos autores. Os títulos multiplicam-se: pai legal, pai putativo, pai nutrício, pai adotivo, pai virginal...

Sao José_.jpg
Em São José de tal maneira brilha a chama
da caridade, um tão intenso amor a Deus, 
uma vida interior tão admirável, 
que ele se tornou objeto das 
complacências do próprio
Deus Encarnado

 Cada um deles define aspectos parciais e incompletos, sem chegar a exprimir por inteiro a paternidade deste varão excepcional. O Pe. Bonifácio Llamera OP parece ter chegado a uma conclusão satisfatória: "A paternidade de São José em relação a Jesus é certamente distinta de qualquer outra paternidade natural, seja física ou adotiva. É verdadeira paternidade, mas muito singular. É uma paternidade nova, única e especial, pois não procede da geração segundo a natureza, mas está fundada num vínculo moral inteiramente real.

E tão real é esta paternidade singular como é verdadeiro o vínculo matrimonial entre Maria e José. (...) "Esta paternidade de São José, tão admirável como difícil de expressar numa palavra, é confirmada e esclarecida pelos Santos Padres e autores de obras sobre o santo Patriarca, os quais concentraram em três vínculos principais a subtil realidade que une São José a Jesus: o direito, que é conjugal; a virgindade e a autoridade que adornam o mistério de São José" (5).

Na encíclica Quamquam pluries, o Papa Leão XIII afirmou: "É verdade que a dignidade da Mãe de Deus é tão alta que nada a pode ultrapassar. Porém, como existe entre a Virgem e São José um laço conjugal, não há a menor dúvida de que ele se aproximou mais do que ninguém dessa dignidade super eminente que coloca a Mãe de Deus muito acima de todas as criaturas."

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Uma criatura dando conselhos ao Criador...

Quantas vezes teve São José nos braços o Divino Infante? O dia inteiro no convívio com o Menino Jesus, observando-O rezar, falar, fazer todos os atos de sua vida comum...

Nessa contemplação constante, para a qual ele tinha uma alma maravilhosamente apta, recebia graças extraordinárias e se deixava modelar. Por vezes, o Menino parava diante dele e dizia: "Peço-vos um conselho: como devo fazer tal coisa?" E São José se comovia, considerando que quem estava lhe pedindo um conselho era o próprio Filho de Deus! A esse homem a Providência concedeu lábios suficientemente puros e humildade bastante grande para fazer essa coisa formidável: responder a Deus.

A criatura plasmada pelas mãos do Criador dava-Lhe conselhos! Ele foi o predestinado para exercer uma verdadeira autoridade sobre Nossa Senhora e o Menino Jesus, o privilegiado que alcançou uma altíssima intimidade com Jesus e Maria, o bem-aventurado a quem foi outorgada a graça de expirar entre os braços de Deus, seu Filho, e da Mãe de Deus, sua Esposa!

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"Ao vencedor concederei assentar-se comigo no meu trono" (Ap 3, 21)

"Não separe o homem o que Deus uniu" (Mt 19, 6). Se, ao longo de sua existência terrena, José foi o inseparável companheiro da Virgem Maria, partilhando suas dores e alegrias, é inconcebível que na eternidade essa convivência não tenha atingido sua plenitude.

Ora, para o convívio ser perfeito, é necessário estar juntos e olhar-se. Por esta razão, uma forte corrente de teólogos defende a tese de que "sem a assunção gloriosa de José em corpo e alma, a Sagrada Família reconstituída no Céu teria tido uma nota discordante na sua exaltação e glória" (6).

A esse respeito, afirma São Francisco de Sales: "Se é verdade o que devemos acreditar, que, em virtude do Santíssimo Sacramento que recebemos, os nossos corpos hão de ressuscitar no dia do Juízo Final, como podemos duvidar de que Nosso Senhor tenha feito subir ao Céu, em corpo e alma, o glorioso São José, o qual teve a honra e a graça de trazê-Lo tantas vezes em seus braços benditos? Não resta dúvida, pois, de que São José está no Céu em corpo e alma".

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Morte de São José

Por ter falecido nos braços de Jesus e Maria, São José é o padroeiro da boa morte. Pois se julga, e com razão, que ninguém foi tão bem assistido como ele em seus últimos momentos.

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Por ter falecido nos braços de Jesus e Maria, São José é o
padroeiro da boa morte. Pois se julga, e com razão, que
ninguém foi tão bem assistido como ele em seus
últimos momentos.

 Quase se poderia dizer que por isso o termo de sua vida foi tão suave e consolador que dele esteve ausente qualquer sofrimento ou angústia.

No entanto, não podemos esquecer que para José esta foi a suprema perplexidade de sua existência terrena. Pois, ao falecer, separava-se do convívio inefável com sua virginal esposa e com Jesus, o Filho de Deus. José partia para a Eternidade, deixando na terra o seu Céu...

A consideração do exemplo e dos preciosos dons concedidos por Deus ao pai adotivo de Jesus nos leve a confiar na poderosa intercessão daquele a quem o próprio Filho de Deus obedeceu: "E era-Lhes submisso" (Lc 2, 51).

"O exemplo de São José - afirmou o Papa Bento XVI na comemoração de sua festa litúrgica - é para todos nós um forte convite a desempenhar com fidelidade, simplicidade e humildade a tarefa que a Providência nos destinou. Penso antes de tudo, nos pais e nas mães de família, e rezo para que saibam sempre apreciar a beleza de uma vida simples e laboriosa, cultivando com solicitude o relacionamento conjugal e cumprindo com entusiasmo a grande e difícil missão educativa. Aos sacerdotes, que exercem a paternidade em relação às comunidades eclesiais, São José obtenha que amem a Igreja com afeto e dedicação total, e ampare as pessoas consagradas na sua jubilosa e fiel observância dos conselhos evangélicos de pobreza, castidade e obediência.

Proteja os trabalhadores de todo o mundo, para que contribuam com as suas várias profissões para o progresso de toda a humanidade, e ajude cada cristão a realizar com confiança e com amor a vontade de Deus, cooperando assim para o cumprimento da obra da salvação" 22. (Revista Arautos do Evangelho, Março/2007, n. 63, p. 18 à 23) 

 

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Santa Francisca Romana

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Mulher forte, como a da Sagrada Escritura, “a mais romana de todas as Santas” iluminou as almas e socorreu os necessitados num dos  mais conturbados períodos da História da Igreja. 

O Divino Salvador instituiu Sua Igreja sobre alicerces bem seguros: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16, 18). Mas, ao longo da História, as forças infernais não deixaram de investir contra essa rocha inabalável.

Uma dessas investidas teve início com as agitações políticas e sociais que forçaram o Papa Clemente V a transferir, em 1309, a sede do Papado para a cidade francesa de Avignon, Sta Francisca_Romana.jpgonde os sucessores de Pedro permaneceram até 1376. Foi um longo período de conturbações que culminaram no Grande Cisma do Ocidente (1378-1417).

A eclosão do Cisma veio agravar ainda mais a situação, a ponto de a Cidade Eterna ficar reduzida a uma situação de miséria, açoitada por guerras, carestia e pestes. Nesse contexto, destacou-se como luminoso anjo da caridade uma jovem dama da alta nobreza: Santa Francisca Romana, a qual, por sua prodigiosa atividade em favor dos pobres e doentes, conquistou o honroso título de Advocata Urbis (Advogada da Cidade).

Piedade precoce

Nascida em 1384, Francisca pertencia a uma rica família de patrícios romanos. Seus pais, Paulo Bussa de Leoni e Jacovella de Broffedeschi, proporcionaram-lhe uma primorosa educação cristã. Desde a mais tenra idade, acompanhava a mãe nas práticas de piedade, como abstinências, orações, leituras espirituais e visitas a igrejas onde pudessem lucrar indulgências.

Frequentava muito a Basílica de Santa Maria Nova, a preferida de sua mãe, confiada aos monges beneditinos de Monte Olivetto. Ali, Francisca começou a receber, ainda criança, direção espiritual de Frei Antonio di Monte Savello, com quem se confessava todas as quartas-feiras.

Aos onze anos, manifestou o desejo de consagrar-se a Deus pelo voto de virgindade. Sua inclinação para a vida monástica se fez notar quando — a conselho do diretor espiritual, para provar a autenticidade de sua vocação — começou a praticar em casa algumas austeridades próprias a certas ordens religiosas femininas. Seu pai, porém, opôs-se a esses infantis projetos, pois ela estava já prometida em casamento a Lourenço Ponziani, jovem de nobre família, bom caráter e grande fortuna.

Esposa exemplar

Francisca foi sempre esposa exemplar. Por desejo do marido, apresentava-se em público com a categoria de dama romana, usando belas jóias e suntuosos trajes. Mas debaixo deles vestia uma tosca túnica de tecido ordinário. Dedicava à oração suas horas livres, e nunca negligenciava as práticas de vida interior. Transformou em oratório um salão do palácio e aí passava longas horas de vigília noturna, acompanhada por Vanozza. Era objeto de mofa das pessoas mundanas, mas sua família a considerava um “anjo da paz”.1

Os desígnios da Providência

Três anos após seu casamento, contraiu uma grave enfermidade que se prolongou por doze meses, deixando temerosos todos os membros da família. Francisca, porém, não temia, pois colocara sua vida nas mãos de Deus, com inteira resignação. Nesse período de prova, por duas vezes apareceu-lhe Santo Aleixo. Na primeira, perguntou-lhe se queria curar-se, e na segunda comunicou-lhe que “Deus queria que permanecesse neste mundo para glorificar seu nome”.2 Colocando então seu manto dourado sobre ela, restituiu-lhe a saúde.

Essa enfermidade, contudo, a fizera meditar profundamente sobre os planos da Providência a seu respeito. E uma vez restabelecida, decidiu, com Vanozza, levar uma vida mais conforme ao Evangelho, renunciando às diversões inúteis e dedicando mais tempo à oração e às obras de caridade.

Proteção do Anjo, ataques do demônio

Foi nessa época que Deus enviou-lhe um Anjo especial para guiá-la na via da purificação. Ela não o via, mas ele estava constantemente a seu lado e se manifestava por meio de sinais claros. Além de amigo e conselheiro, era vigilante admoestador, que a castigava quando ela cometia qualquer pequena falta. Certa vez em que Francisca, por respeito humano, não interrompeu uma conversa superficial e frívola, ele aplicou-lhe na facedetalhe do teto da BasilicaSFrancescaRomana.jpg um golpe tão forte que deixou sua marca por vários dias e foi ouvido na sala inteira!

O demônio empreendia todo tipo de esforços para perturbar a vida e, sobretudo, impedir a santificação de Francisca. Como a Santa sempre triunfava de suas tentações, ele recorria com frequência a ataques diretos. Assim, em certa ocasião ela e Vanozza retornavam da Basílica de São Pedro e decidiram tomar um atalho, pois já era tarde. Chegando à margem do Tibre, inclinaram-se para tomar um pouco de água. Empurrada por uma força invisível, Francisca caiu no rio. Vanozza lançou-se para salvá-la e foi também arrastada pela correnteza. Sentindo em perigo suas vidas, recorreram a Deus e no mesmo instante se viram de novo na margem, sãs e salvas.

Modelo de mãe e de dona de casa

Quando em 1400 nasceu seu primeiro filho, João Batista, não duvidou em deixar algumas de suas mortificações e exercícios piedosos, para melhor cuidar do menino. Ao carinho materno, unia a firmeza da boa educadora, corrigindo-o em suas infantis manifestações de teimosia, obstinação e cólera, sem nunca ceder às suas lágrimas de impaciência. Foi modelo de mãe igualmente para João Evangelista e Inês, que nasceram alguns anos depois.

Seu Anjo ajudou-a a levar sua vida matrimonial com amor e dedicação, tanto para o esposo quanto para os filhos. Cumpria com perfeição seu ofício de dona de casa, compreendendo que os sacrifícios impostos pelas tarefas cotidianas fazem parte da purificação necessária nesta vida e têm prioridade sobre as mortificações particulares. Desempenhou-se de tal maneira que, em 1401, quando faleceu a esposa do velho Ponziani, seu sogro, este incumbiu-a do governo do palácio. Nessa função, a jovem senhora demonstrou grande capacidade, inteligência e, sobretudo, bondade.

Organizou os trabalhos da numerosa criadagem de modo a todos terem tempo de cumprir seus deveres religiosos. Assistia-os em suas necessidades materiais e os incentivava a levar uma vida verdadeiramente cristã. Quando algum deles adoecia, Francisca se fazia de enfermeira, mãe e irmã. E se a enfermidade acarretava perigo de vida, ela mesma ia buscar a assistência espiritual de um sacerdote, a qualquer hora do dia ou da noite.

Prodígios realizados em vida

Por volta de 1413, a fome se abateu sobre Roma. O sogro de Francisca alarmou-se ao ver que ela conti­nuava muito generosa em procurar o que pudesse ter restado de trigo no meio da palha. À custa de paciente trabalho, conseguiram recolher alguns poucos quilos do desejado grão. Coisa admirável: logo após a saída das duas, Lourenço, seu esposo, entrou no celeiro e lá encontrou 40 sacos contendo, cada um, 100 quilos de trigo dourado e maduro!ajudar os necessitados... distribuindo-lhes parte das provisões que ele reservara para sustento da família, e proibiu-a de fazê-lo. Não podendo mais a caridosa dama dispor daqueles víveres para socorrer os famintos, começou a pedir esmolas para eles. E certo dia, tomada de súbita inspiração, foi com Vanozza a um celeiro vazio do palácio para

Idêntico prodígio se deu na mesma época: querendo levar aos pobres um pouco de vinho, Francisca recolheu a escassa quantidade que restava no fundo de um tonel e no mesmo instante este encheu-se milagrosamente de um excelente vinho.

Esses prodigiosos fatos muito contribuíram para suscitar em Lourenço um temor reverencial e amoroso por sua esposa. Em consequência, ele lhe deu liberdade de dispor de seu tempo para suas obras apostólicas e lhe permitiu trocar seus belos trajes e joias — os quais ela apressou-se a vender para distribuir aos pobres o dinheiro — por roupas simples e pouco vistosas.

Guerras e provações

Muitas provações ainda a aguardavam. A situação política da Península Itálica e a crise decorrente do Grande Cisma do Ocidente acarretaram-lhe muitos sofrimentos. Roma estava dividida em dois grupos que travavam encarniçada guerra: a favor do Papa, os Orsini, de cuja facção Lourenço fazia parte; de outro lado, os Colonna, apoiando Ladislau Durazzo, rei de Nápoles, que invadiu Roma três vezes. Na primeira invasão, Lourenço foi gravemente Sta_Francisca_Romana_.jpgferido em combate, sendo curado pela fé e dedicação da esposa. Na segunda, em 1410, as tropas saquearam o palácio dos Ponziani, e os bens da família foram confiscados. Pior ainda, Francisca viu seu esposo e seu filho Batista partirem para o exílio.

Em 1413 e 1414, a capital da Cristandade ficou entregue à pilhagem e reduzida à miséria. Um novo flagelo, a peste, veio agravar essa situação. A Santa transformou o palácio em hospital e cuidava pessoalmente das vítimas da terrível doença. Era um anjo da caridade naquela infeliz cidade assolada pelo infortúnio.

Sua própria família não ficou imune a essa tragédia: em 1413 morreu Evangelista, seu filho mais novo, e no ano seguinte a pequena Inês. Por fim, ela também contraiu a doença, mas foi milagrosamente curada por Deus.

Visões e dons sobrenaturais

Ainda em 1413, apareceu-lhe seu filho falecido havia pouco, tendo a seu lado um jovem do mesmo tamanho, parecendo ser da mesma idade, mas muito mais belo.

- És realmente tu, filho do meu coração? — perguntou ela.

Ele respondeu que estava no Céu, junto com aquele esplendoroso Arcanjo que o Senhor lhe enviava para auxiliá-la em sua peregrinação terrestre.

- Dia e noite o verás ao teu lado e ele te assistirá em tudo — acrescentou.

Aquele Espírito celestial irradiava uma tal luz que Francisca podia ler ou trabalhar à noite, sem dificuldade alguma, como se fosse dia. E lhe iluminava o caminho quando precisava sair à noite. Na luz desse Arcanjo, ela podia ver os pensamentos mais íntimos dos corações. Recebeu, ademais, o dom do discernimento dos espíritos e o de conselho, os quais usava para converter os pecadores e reconduzir os desviados ao bom caminho.

Deus a favoreceu com numerosas outras visões. As mais impressionantes foram as do inferno. Viu em pormenores os suplícios pelos quais são punidos os condenados, de acordo com os pecados cometidos. Observou a organização hierárquica dos demônios e as funções de cada um na obra de perdição das almas, uma paródia da hierarquia dos Coros Angélicos. Lúcifer é o rei do orgulho e o chefe de todos. Viu ainda como os atos de virtude praticados pelos bons atormentam essas miseráveis criaturas e prejudicam sua ação na terra.

Vida de apostolado

Tendo falecido o rei Ladislau, restabeleceu-se a paz na Cidade Eterna, seu esposo e seu filho Batista regressaram do exílio, e a família Ponziani recuperou os bens injustamente confiscados.

Por meio de orações e boas palavras, a Santa conseguiu convencer Lourenço a reconciliar-se com seus inimigos e a entregar-se a uma vida de perfeição. E após o casamento do filho, entregou à nora — convertida por ela — o governo do palácio para dedicar-se inteiramente às obras de caridade e de apostolado.

Lourenço deixou-a livre para fundar uma associação de religiosas seculares, com a condição de continuar vivendo no lar e não parar de guiá-lo no caminho da santidade. Orientada por seu diretor espiritual, fundou uma sociedade denominada Oblatas da Santíssima Virgem, segundo o modelo dos beneditinos de Monte Olivetto. Em 15 de agosto de 1425, Francisca e outras nove damas fizeram sua oblação a Deus e a Maria Santíssima, mas sem emitir votos solenes. Vivia cada qual em sua casa, seguindo os conselhos evangélicos, e se reuniam na igreja de Santa Maria Nova para ouvir as palavras de sua fundadora, que para elas era guia e modelo a imitar.

Alguns anos depois, ela recebeu a inspiração de transformar essa sociedade em congregação religiosa. Adquiriu o imóvel de nome Tor de’ Specchi e, em março de 1433, dez Oblatas de Maria foram revestidas do hábito e ali se estabeleceram, em regime de vida comunitária. Em julho desse mesmo ano, o Papa Eugenio IV erigiu a Congregação das Oblatas da Santíssima Virgem, nome mudado posteriormente para Congregação das Oblatas de Santarestos mortais de Sta Francisca Romana_.jpg Francisca Romana. Era uma instituição nova e original para seu tempo: religiosas sem votos, sem clausura, mas de vida austera e dedicadas a um genuíno apostolado social.

Comprometida como estava pelo matrimônio, somente depois da morte do esposo, em 1436, Francisca pôde afinal realizar o maior desejo de sua vida: fazer-se religiosa. Entrou como mera postulante na congregação por ela fundada. Mas foi obrigada — pelo capítulo da comunidade e pelo diretor espiritual — a aceitar os encargos de superiora e fundadora.

Viu o Céu aberto e os Anjos vindos para buscá-la

Viveu no convento apenas três anos. Em 1440, viu-se forçada a retornar ao palácio Ponziani para cuidar de seu filho, gravemente enfermo. Atingida por uma forte pleurisia, ali permaneceu, por não ter mais forças. Soube então que havia chegado seu derradeiro momento. Padeceu terrivelmente durante uma semana, mas pôde dar seus últimos conselhos às suas filhas espirituais e despedir-se delas.

No dia 9 de março, depois de agradecer a seu diretor, o Padre Giovanni, em seu nome e no da comunidade, quis rezar as Vésperas do Ofício da Santíssima Virgem. Com os olhos muito brilhantes, dizia estar vendo o Céu aberto e haverem chegado os Anjos para buscá-la. Com um sorriso iluminando-lhe a face, sua alma deixou esta Terra.

Ao elevá-la às honras dos altares, em maio de 1608, o Papa Paulo V qualificou-a de “a mais romana de todas as Santas”.3 E o Cardeal São Roberto Belarmino, que contribuíra decisivamente, com seu voto, para a canonização, declarou no Consistório: “A proclamação da santidade de Francisca será de admirável proveito para classes muito diferentes de pessoas: as virgens, as mulheres casadas, as viúvas e as religiosas”.4

Quatro séculos depois, o Cardeal Angelo Sodano traçava dela este quadro: “Lendo sua vida, parece que nos deparamos com uma daquelas mulheres fortes, das quais estão repletos os Livros Sagrados e as páginas da História da Igreja. […] Mulher de ação, Francisca hauria, contudo, de uma intensa vida de oração a força necessária para seu apostolado social”.5

Precioso conselho para todos nós: é “de uma intensa vida de oração” que nos vem a força para levar avante nossas obras de apostolado. (Revista Arautos do Evangelho, Março/2009, n. 87, p. 30 à 33)

² 1 SUÁREZ, OSB, Pe. Luis M. Pérez. Santa Francisca Romana. In: ECHEVERRÍA, L.; LLORCA, B. e BETES, J. (Org.). Año Cristiano. Madrid: BAC, 2003. p. 173. 2 Idem, ibidem. 3 Tor de’Specchi, Monastero delle Oblate di S. Francesca Romana – Venerazione e culto. Disponível em: . Acesso em: 14/01/2009. 
4 SUÁREZ, OSB, Op. cit., p. 185. 
5 SODANO, Card. Angelo. Homilia por ocasião da festa de Santa Francisca Romana, 05/03/2005. Disponível em: . Acesso em: 14/01/2009.

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