Todos nós somos cristãos! Até tu, ateu!

Avaliação do Usuário: / 0
PiorMelhor 

 

Quando arqueólogos do Vaticano desenterraram o sarcófago com os restos mortais do apóstolo Paulo, nascido no ano 10 e decapitado em 67, vinham à luz alguns séculos de civilização, de que a mensagem de Cristo é, a um só tempo, conseqüência e causa. Combatido, submetido ao obscurantismo politicamente correto e tomado como inimigo das minorias multiculturalistas – tão mais barulhentas quanto mais minoritárias –, o cristianismo, não obstante, guarda as chaves do humanismo moderno e da democracia e constitui o que o homem tem produzido de melhor em pluralismo, tolerância e, creiam!, avanço científico.

A humanidade produz bíblias e armas, tuberculose e tuberculina (…), constrói igrejas e universidades que as combatem; transforma mosteiros em casernas, mas nas casernas coloca capelães militares“, escreveu o romancista austríaco Robert Musil (1880-1942) em O Homem sem Qualidades.

Falamos de uma “civilização” que parece ser a improvável história de um permanente paradoxo. E, no entanto, ela avança, sempre duvidando de si mesma, mergulhada às vezes no horror, mas se recuperando, em seguida, para a maravilha.

Cristo e o cristianismo seguem como as principais referências da civilização ocidental. De tal sorte é assim, que nem pensamos nisso. Culturas vitoriosas são estáveis, pacíficas, civilistas e até um tanto frívolas na proteção dos seus fundamentos.

Quem viu o papa Bento XVI, na Turquia, orando como oram os muçulmanos assistiu à presença serena de um pastor que não duvida da natureza inclusiva do seu credo. O cristianismo, na sua manifestação mais poderosa, a Igreja Católica – 1,098 bilhão de pessoas, segundo o Anuário Pontifício de 2006 –, voltava a Paulo. Se não mais para converter, para compreender. Estima-se que um terço da humanidade – 2,1 bilhões de pessoas – seja cristão.

É claro que o que vai acima se presta ao contencioso. Especialmente num tempo em que toda evidência serve à contestação. As culturas vitoriosas dão à luz os críticos de seus próprios fundamentos. É a melhor evidência de um triunfo. Assim, haveria ali a indisfarçável afirmação da supremacia de uma visão de mundo. Cristo é e seguirá sendo a principal referência do que reconhecemos no Ocidente como a nossa “cultura” porque somos todos cristãos. Se não formos pela fé, seremos pela história; se não formos porque devotos da Revelação, seremos porque caudatários de uma revolução. Cristãos, ateus, judeus, islâmicos, budistas, materialistas, espíritas, agnósticos, comungamos de um patrimônio que entendemos como um ideal de civilização e de justiça.

Se o cristianismo conferiu uma ética nova, como se viu, à cultura greco-romana, tomou dela emprestados alguns séculos de especulação filosófica. De sorte que se constituiu, no tempo, como a memória de dois humanismos, de duas visões totalizantes: a helênica – grega – e a dos Evangelhos.

Apostamos nas virtudes do exame de consciência; estamos ocupados em controlar nossos impulsos para ser reconhecidos como pessoas a serviço do bem e da verdade; esforçamo-nos para demonstrar que preferimos ser colhidos pela injustiça a praticá-la; aspiramos a valores espirituais acima dos materiais e apreciamos tal qualidade nos outros; boa parte de nós acredita numa justiça divina que sucede à morte, e os que não chegam a tanto demonstram seguir um modelo perfeito ao menos na idéia. Somos, de fato, não só cristãos, mas também herdeiros involuntários do filósofo grego Platão (428-348 a.C.).

E onde essas idéias não se transformaram em leis, em códigos leigos, o poder se impõe pelo terror, pela ditadura, pela violência institucionalizada, pela morte – e, freqüentemente, assim se procede “em nome de Deus”. Não há humanismo leigo que tenha sido tão poderoso na história humana quanto três palavras que salvam: consciência, arrependimento e perdão.

A referência a Platão ilumina o debate. Se, do ponto de vista da origem histórica, faz sentido falar em um mundo “judaico-cristão”, no que concerne à religião e à filosofia, o que ganhou o mundo foi o helenismo cristão. O Império Romano helenizado havia abolido as fronteiras, estimulado a especulação filosófica, reconhecido a cidadania dos povos conquistados, estabelecido o ideal – e só o ideal – de uma humanidade fraterna, com a qual sonhavam os filósofos.

Richard Tarnas, autor de A Epopéia do Pensamento Ocidental, nota que a abertura do Evangelho de João – “No princípio era o Verbo” – remete ao “logos universal da filosofia grega”, isto é, a uma espécie de inteligência cósmica, que “transcendia todas as oposições e imperfeições aparentes”.Isso pressupunha a existência de uma Razão, de um cosmo universal, potencialmente alcançável por qualquer homem, independentemente de sua origem.

O judeu Fílon de Alexandria, que nasceu entre os anos 15 e 10 a.C. – contemporâneo de Jesus e de Paulo –, falava de uma certa “idéia das idéias”, fonte da inteligibilidade do mundo. Sem Alexandre Magno (356-323 a.C.), educado pelo filósofo Aristóteles (384-322 a.C.), e o Império Romano, com a sua paz duradoura, talvez o cristianismo tivesse ficado restrito à Galiléia. Não faz sentido contar a história que não houve, mas é preciso que nos coloquemos uma questão: por que a doutrina se difundiu e se tornou hegemônica além das fronteiras da Palestina sem que tenha, em sua própria terra de origem, suplantado o judaísmo, de onde derivou?

Os primeiros cristãos de Jerusalém, nota o historiador romeno naturalizado americano Mircea Eliade (1907-1986) em História das Crenças e das Idéias Religiosas, eram judeus de Jerusalém que “constituíam uma seita apocalíptica dentro do judaísmo palestino”. Eles “estavam na espera iminente da segunda vinda do Cristo”. A ekklesía (termo grego que designa igreja) cristã nasce no Dia de Pentecostes. Em Atos dos Apóstolos, lemos que os discípulos de Jesus estavam reunidos quando, “de repente, veio do Céu um estrondo (…) e lhe apareceram umas línguas de fogo, e pousou uma sobre cada um deles (…) e começaram a falar em várias línguas” (At, 2: 1-4). Pedro então conclama os varões de Israel à conversão: “Saiba logo toda a Casa de Israel, com a maior certeza, que Deus o fez não só Senhor, mas também Cristo a este Jesus” (At, 2:36). Khristós, em grego, significa “o Ungido”, o “Messias”.

O Pentecostes era uma festa religiosa dos judeus, inicialmente ligada à colheita e depois à entrega da Tábua das Leis no Monte Sinai. O início da igreja cristã assiste, como se vê, a uma manifestação análoga àquela fundadora para o judaísmo: segue a tradição mosaica – do patriarca Moisés –, embora a hierarquia religiosa judaica fosse hostil aos apóstolos. Uma hostilidade que era menor contra os hebreus locais do que contra os judeus “helenistas”.

O (livro de )Atos relata intrigas e falsos testemunhos contra inocentes acusados de blasfêmia. Ainda que as imputações fossem falsas, a verdade é que os cristãos helenistas resistem à herança rabínica do cristianismo da Palestina. Santo Estêvão, primeiro mártir da religião, desafia a hierarquia ao negar que Deus precisasse de um templo: “Mas Salomão lhe [a Deus] edificou a casa. Porém, o Excelso não habita em casas feitas por mãos humanas, como diz o profeta” (At, 7: 47-48). Ele é martirizado e tem início uma grande “perseguição à Igreja”. Em At, 8:3, está presente o grande artífice do cristianismo, mas ainda como inimigo dos cristãos: Paulo, protagonista desta história.

O cristianismo como uma ética das relações foi, sustenta Rodney Stark, um dos fatores de seu enraizamento na Antiguidade e de sua expansão em todas as classes e grupos sociais, com especial ênfase entre as mulheres. Se a visão de mundo cristã não era avessa ao “logos” grego, como aqui se escreveu, emprestava à família um acento estranho àquela cultura, o que foi logo percebido pelas mulheres. Elas, como sói acontecer, identificaram primeiro o amor de salvação.

Por Reinaldo Azevedo

Compartilhar

| Imprimir | PDF 

Back to top

Copyright © Comunidade Sião 2024

Template by Joomla Templates & Szablony Joomla.